Dia Mundial da Água: Sociedade civil se mobiliza para
torneira não secar
Rafael Barifouse Da BBC Brasil em São Paulo
22 março 2015
Edison Urbano criou uma minicisterna de baixo custo e agora ensina outros
a construí-la
Edison Urbano ainda estranha ser chamado de professor, mesmo quando está
diante de uma turma em uma sala de aula em um centro cultural na zona
norte de São Paulo.
Na quinta-feira, ele ensinava moradores da região a captar água da chuva
para usar se a torneira secar -algo comum em muitas partes da capital
paulista desde meados do ano passado, quando foi aplicada uma diminuição
da pressão na rede de abastecimento.
Urbano aprendeu por conta própria a fazer uma minicisterna com tonéis,
tubos de PVC e telas de mosquito para coletar, filtrar e armazenar a água
da chuva.
Há cinco meses, dedica-se quase integralmente a ensinar como montar este
sistema como um dos coordenadores do Movimento Cisterna Já, uma das várias
organizações sociais criadas em São Paulo desde que a água começou a
faltar, no ano passado.
Os reservatórios baixaram a níveis inéditos e, neste domingo, o Estado
passa pelo segundo Dia Mundial da Água -celebrado todo 22 de março-
consecutivo em meio a uma crise hídrica sem precedentes.
"Quis agir para reverter ou amenizar a situação. Temo que, sem água, a
gente acabe em uma guerra civil, porque vai faltar alimento também. É esse
medo que me move", afirma Urbano.
"Já o que me move é o desespero", diz a psicóloga Camila Pavanelli, autora
do Boletim da Falta D’Água, um blog em que ela reúne e comenta em
postagens semanais as mais recentes informações sobre a crise hídrica.
Esse trabalho começou em outubro passado, quando Pavanelli decidiu listar
em um post no Facebook o que havia lido sobre o assunto. Em meio a
curtidas e compartilhamentos, também vieram pedidos para que
disponibilizasse a pesquisa de uma forma que fosse mais fácil encontrá-la.
Para quem já tinha um blog pessoal, fazer outro sobre a falta de água foi
natural.
"Fazer o blog me faz sentir viva. Não cogito morar em São Paulo e não
discutir este problema", diz Pavanelli.
Sinal de alerta
Estas iniciativas são recentes em São Paulo. A cidade já tinha ONGs
voltadas para temas como moradia, combate à violência, mobilidade,
educação e saúde, entre outros.
Mas tamanha mobilização social em torno da água é novidade, porque “só
agora se faz necessária”, como explicou Pablo Ortellado, professor de
Gestão de Políticas Públicas da USP, em aula sobre a crise hídrica
realizada no fim de fevereiro no vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp),
palco de nove em cada dez manifestações na região central da cidade.
O primeiro alerta soou em dezembro de 2013, quando choveu 72% abaixo do
normal. Aquele foi o verão mais quente desde 1943, quando começaram as
medições. Nos dois meses seguintes, a média de chuvas foi 66% e 64% menor,
respectivamente, fazendo com que São Paulo enfrentasse a estiagem mais
intensa desde o início do registro de chuvas, em 1930.
Em fevereiro de 2014, o nível do Sistema Cantareira, que abastece 6,2
milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo, atingiu 14,6%, o
mais baixo desde sua criação, em 1974.
A Sabesp, empresa de abastecimento de São Paulo, informou à BBC Brasil que
vem realizando uma série de medidas para ampliar a disponibilidade de água
e reduzir a dependência da região metropolitana do Cantareira. Em
comunicado, a empresa ainda afirma "seguir rigorosamente as determinações
de órgãos reguladores".
Uma destas medidas foi a autorização para usar duas cotas do volume morto
do Cantareira, nome dado à água que ficava abaixo do nível de captação.
Mas, na ausência de chuvas capazes de recompor o sistema, seu nível
continuou a baixar a patamares inéditos.
Mobilização
No entanto, para Ortellado, existe uma percepção por parte de alguns de
que as autoridades não agiram de modo adequado em relação à crise, o que
teria catalisado a mobilização social em torno da água.
"Se as pessoas acreditam que não é possível contar com o governo, isso
cria um sentimento de urgência que faz a sociedade civil agir por conta
própria, usando suas habilidades em prol desta causa", afirma Ortellado.
Para a urbanista Marussia Whately, isso significa coordenar o trabalho de
mais de 40 ONGs reunidas pela Aliança pela Água, organização criada em
outubro passado para cobrar ações do governo, elaborar projetos para
atenuar o impacto da falta de água e informar a população de seus
desdobramentos.
Especializada em gestão de recursos hídricos, ela já atuou como consultora
de ONGs, como a Imazon e o Instituto Socioambiental, e à frente da Aliança
Pela Água tornou-se uma das principais vozes da mobilização da sociedade
civil em torno da crise.
"Tínhamos organizações muito dispersas. A Aliança cria o espaço para elas
interagirem e criarem uma agenda mínima de ações e propostas, além de uma
força-tarefa para monitorar o respeito aos direitos dos cidadãos e impedir
um retrocesso das conquistas", diz Whately.
Para ela, o fato de São Paulo passar por uma situação sem precedentes
torna a solução ainda mais complexa, na qual a participação de cidadãos é
imprescindível.
"O debate não pode ficar restrito ao que a Sabesp planeja fazer. O
problema vai muito além das represas”, diz Whately.
"Temos que engajar a sociedade e fazer com que as pessoas revejam sua
postura política e seus hábitos. Por ser uma crise grave, a solução não
virá de um único ator."
Minicisterna
Urbano diz acreditar que está fazendo sua parte com os cursos sobre a
minicisterna. Nesta semana, ele deu dois dias de aula para uma turma de 20
pessoas, entre jovens, adultos e idosos, que moram na Zona Norte de São
Paulo, uma das regiões mais afetadas pela falta de água.
Primeiro, Urbano ensina a teoria, que inclui conceitos de sustentabilidade,
saúde pública e hidrologia, enquanto vai construindo a minicisterna diante
dos alunos. “Não fiquem esperando uma ação do governo. Tomem uma atitude,
porque é nossa saúde que está em risco", diz para a turma.
Urbano criou este sistema por necessidade. Técnico em eletrônica, ele viu
seu trabalho minguar com a "chegada dos aparelhos da China". Acabou
demitido e, com dificuldade para conseguir um emprego, decidiu criar
formas de economizar dinheiro.
Inventou um aquecedor de água com energia solar, um sistema de horta
caseira e uma série de outros projetos que passou a divulgar por meio do
site Sempre Sustentável, enquanto também dava cursos.
No ano passado, aceitou a sugestão de um amigo, o engenheiro Guilherme
Castagna, de adaptar a minicisterna de acordo com as normas técnicas de
reuso de água e ensinar como construí-la. Cinco meses depois, exibe com
orgulho as fotos enviadas por ex-participantes do curso com suas próprias
minicisternas.
"Fico muito grato. Sinto que estou fazendo alguma coisa. Se você reunir
todas as minicisternas já feitas, vira uma cisterna gigante que eu não
conseguiria construir sozinho", diz ele.
Já Camila Pavanelli diz que contribui para sanar a crise ao organizar a
"loucura de informações" em torno da crise hídrica. No início, ela
publicava seu boletim diariamente, mas, desde o início do ano, mudou a
tática. Passou a reunir reportagens e documentos por meio de uma conta no
Twitter e a dedicar o domingo e parte da segunda-feira a escrever um post
semanal.
"Não existe um interesse em se informar e há uma dificuldade em perceber
que faltam políticas públicas para a água,assim como ocorre com a
violência, por exemplo. Quero que as pessoas se mobilizem mais", afirma
Pavanelli.
"Seria arrogante pensar que vou conseguir fazer isso. Tem quem me
critique. Mas também há muita gente que me agradece por usar meu tempo
para fazer este trabalho."
Desafios
Pablo Ortellado, da USP, diz que a mobilização social é importante para
canalizar a insatisfação da sociedade civil e impedir que ela gere uma
"selvageria, com quebra-quebra e saque de água", como ocorreu em Itu, no
interior de São Paulo, no ano passado. No entanto, também afirma que as
organizações criadas em torno da crise hídrica enfrentam algumas
dificuldades.
"É difícil mobilizar a população quando a insatisfação está mal
distribuída pela cidade, já que falta água em alguns bairros e não em
outros. E, como nunca vivemos uma crise assim, falta um grupo de
referência, com legitimidade para mobilizar, como ocorre com outras
questões sociais", afirma o especialista.
"As pessoas só vão para rua quando confiam nas organizações que se
manifestam por isso. É importante que estes grupos comecem a construir
essa legitimidade para representar a insatisfação da população."
Em meio à crise e a mobilização provocada por ela, surgiram boas notícias.
Chuvas acima da média histórica em fevereiro fizeram o nível dos
principais sistemas que abastecem São Paulo voltar a subir. Atualmente, os
reservatórios do Cantareira estão em 16%. Com isso, a Sabesp afirmou que a
região metropolitana está livre de racionamento até o segundo semestre.
No entanto, Urbano, do Cisterna Já, diz ter "plena consciência de que a
situação vai piorar” -opinião compartilhada por Whately, da Aliança pela
Água. "Vamos chegar à estação da seca numa situação igual ou pior do que
no ano passado, porque as represas estarão com um nível mais baixo”, diz
Whately.
O desafio para estas organizações agora é conseguir mobilizar a população,
já que o interesse pelo tema diminui diante de um aparente risco menor de
restrição no abastecimento. O Movimento Cisterna Já teve de cancelar um
curso, porque o número de inscritos foi insuficiente. Por sua vez, o
Boletim da Falta D’Água, que chegou a ter posts compartilhados 1,5 mil
vezes, hoje não atinge 200.
"Ninguém mais quer saber de falta de água. Não consegui nem convencer meus
vizinhos a instalar uma cisterna no prédio", diz Pavanelli, que ainda
assim não pretende abandonar o blog.
"Sinto-me um fracasso completo, mas isso me motiva. Outro dia, encontrei
um vídeo dizendo que o Cantareira está cheio e que a crise é uma farsa.
Foi visto por mais de 1 milhão de pessoas. Enquanto isso existir, é sinal
de que preciso continuar. Se eu não fizer, quem vai fazer?"
Urbano planeja aumentar o número de cursos gratuitos para driblar a falta
de interesse e aumentar a divulgação do projeto.
Por sua vez, Whately se diz otimista: "Trabalho há vários anos com a
questão da água e finalmente começo a ver pessoas sabendo que Cantareira
não é apenas o nome de uma serra, revendo seus hábitos e mais ligadas em
um assunto tão importante. Ainda temos mais dois anos de crise pela frente
pelo menos. A mobilização só começou."
E a aventura continua...
Abraços, sucessos e até +,
Edison Urbano.
Criação, P&D e disseminação em tecnologias de baixo custo.
e-mail: ediurb@sempresustentavel.com.br
Site: www.sempresustentavel.com.br